2 de jan. de 2013

UMA MORTE CEREBRAL, UM MÉDICO JOGADO ÀS TRAÇAS

Não sou defensor de ninguém. No máximo, sou defensor de mim mesmo.
Fica muito fácil para o governo, para a imprensa, para todo mundo, execrar um médico, quando ocorre uma morte que ninguém pode garantir que tivesse sido evitada, mas que deveria merecer pelo menos toda tentativa para que tivesse sido evitada.
Mas a discussão morre aí.
Penso que muita coisa deve ser meditada, se quisermos, realmente, que nossos sistemas funcionem melhor.
Minha primeira indagação: e a bala perdida? Não entra na discussão? Hoje, ouvi em um jornal que foram três balas perdidas em menos de quinze dias, duas resultando em morte.
Relutava muito em ir ao Rio de Janeiro. Sei que a vítima de assalto é eleita pelo azar. Sei que, estatisticamente, significa quase nada, relativamente ao número dos habitantes de qualquer lugar. Admitia, sem bronca, a hipótese de morrer vítima de um assalto, em que eu fosse o assaltado. Mas não me conformava - e não me conformo - com a possibilidade de morrer vítima de uma bala perdida, em que o assaltado é outro. Ora direis: peru é que morre de véspera. Mas não me conformava com a idéia de ir ao Rio de Janeiro e ser vítima de bala perdida.
Filosofando: a causa primeira da morte cerebral dessa menina foi uma bala perdida, não a falta de um cirurgião. Questão de segurança pública, que é recorrente, em várias cidades do Brasil. Não podemos analisar a questão sob o prisma do "isto não tem jeito".
Vou tentar continuar filosofando, se me permitem.
Achei algo confusas as notícias sobre a falta de atendimento: pesquei na rede que o primeiro atendimento foi no Hospital Salgado Filho. Certo que o atendimento intermediário foi eficiente, segundo o noticiário: segundo UOL notícias, fato à 0 h 15 min, chegada ao hospital à 0 h 30 min. Dali para diante, falta do cirurgião escalado para o plantão noturno naquele hospital.
Será que não havia outro cirurgião em plantão noturno, em outro hospital, público ou privado? Há procedimentos específicos do SUS, para as hipóteses de transferência. Se a criança tivesse sido transferida, em helicóptero, para hospital que estivesse mesmo em outra cidade (o Estado do Rio de Janeiro não apresenta grandes distâncias), a menina não teria ficado oito horas sem assistência. Olhem que nem estou falando em jatinho. Não posso crer que houvesse apenas um neurocirurgião escalado para o plantão noturno, em todo o Estado do Rio de Janeiro, ou adjacências. Nem mesmo na cidade, aonde acidentes graves acontecem com freqüência muito significativa. Mas o UOL informa que Crespo seria o único na especialidade a trabalhar na noite do dia 25 de dezembro.
Não terá faltado uma providência qualquer do Estado, durante essas oito horas, para que a criança tivesse sido atendida? Afinal, aquela criança não era vítima de uma ação criminosa dirigida a ela, mas da segurança deficiente, responsabilidade do Estado.
Vamos adiante: não podemos deixar de pensar na atitude do médico plantonista faltoso. Poderá ele estar coberto de razão, pelo fato de a escala contemplar apenas um neurocirurgião, no Hospital Salgado Filho. Mas não pode justificar-se apenas afastando-se do serviço, por sua própria decisão. Mesmo sendo certo que, se acontece um fato grave em um plantão de um médico só, resultando morte de alguém, o médico será sempre o grande culpado.
O médico disse que estava faltando a plantões, havia mais de um mês,e que comunicara isto a um superior que mencionou, porque discorda da conduta de escalar um único neurocirurgião, já que o Conselho de Medicina do Rio de Janeiro exige que sejam dois os médicos em cada especialidade. Provavelmente, o médico não terá oficializado seu aviso. O superior mencionado negou tivesse sido avisado (esta parte eu ouvi pela TV). E acrescentou que segue as normas do Ministério da Saúde, que não faz essa exigência de dois plantonistas. O cidadão não quer saber que ordem deve prevalecer: se a ordem burocrática de um Ministério, ou se a recomendação prudente de quem lida diariamente com os plantões, principalmente em cidade grande, que minha mulher costuma classificar de "verdadeiros Vietnans". O cidadão quer e precisa ser atendido.
Não deixa de ser muito estranho que um médico falte a plantões durante um mês e nenhuma providência seja tomada a respeito (não há notícia disto). Mesmo a direção do hospital negando que o médico tivesse avisado sobre isto, tem de conhecer as faltas a plantões. Alguém está fugindo da verdade.
Sobre as informações que busquei, vou terminar com a fala do Prefeito eleito da cidade do Rio de Janeiro, que ouvi através de REDE GLOBO -
http://redeglobo.globo.com/videos/t/jornalismo/v/menina-vitima-de-bala-perdida-e-falta-de-atendimento-em-hospital-tem-morte-cerebral/2319912/. Vou transcrever o que ouvi da gravação:

"Assim que foi reeleito, o Prefeito Eduardo Paes, falou em entrevista ao RJTV, primeira edição, que vai implantar formas mais eficientes para controlar a freqüência dos médicos. 'Eu quero o controle biométrico, que eu acho que é uma coisa supercivilizada, que praticamente inviabiliza fraudes, e a gente passa a ter esse acompanhamento'."

Significa que o controle era, no mínimo "menos eficiente".
Ô sô do céu! Quatro anos não bastaram ao prefeito (já que foi reeleito) para controlar adequadamente a freqüência dos médicos? Havia fraudes? (se não havia, para que falar em fraudes? e para que quer o controle biométrico, que inviabiliza fraudes?). Parece que a situação de mau atendimento não é recente. As freqüentes notícias disto na imprensa confirmam a impressão.
Então, não basta gritar pela punição do médico, como se isto, por si só, resolvesse as dificuldades e deficiências no atendimento à saúde da população.
Por que estou tomando tanto tempo de vocês (e vou tomar mais)?
Porque minha mulher, médica com atuação no Serviço Público, como plantonista, reclamou para a direção do hospital no qual presta serviço, em princípio de outubro de 2009, de que, desde o mês de agosto, estava ocorrendo a falta de um plantonista em seu setor. Falou da demanda (regional) e das dificuldades para atendimento com um só médico (o CRMMG também recomenda dois). Disse que transmitira a ocorrência à direção do hospital, a qual não se manifestou. No plantão do dia 3 de outubro, as demandas do serviço apresentaram dificuldades maiores. Solicitou da enfermeira responsável pelo plantão que buscasse solução. A resposta foi burocrática: a médica deveria elaborar um documento, que seria encaminhado à direção, no dia seguinte (em pleno plantão, no meio do furdunço). A médica tentou contato telefônico com a direção do hospital e com a chefia da gerência assistencial, através de uma funcionária, sem êxito. A médica telefonou para a coordenadora de seu setor, no hospital. A coordenadora disse que não tinha ciência de que o antigo companheiro de plantão da médica havia sido transferido para Belo Horizonte (coordenadora, hein?). Uma das demandas foi resolvida satisfatoriamente, graças ao empenho do médico plantonista em uma das cidades demandantes, que acompanhou a paciente e auxiliou no ato médico de cesariana, com sucesso. Mas as demandas continuavam e não havia uma solução. Então, a médica pediu orientação ao "advogadim de província" (gosto de qualificar-me assim) - seu marido -  durante o plantão, porque ainda havia demanda externa considerável (cidades da regional), além do regime de "porta aberta" para pacientes locais, e não conseguia providências que pudessem solucionar o impasse. Primeira providência: solicitou a presença de uma guarnição de PM, para lavratura de um BO, caracterizando que a médica estava escoteira no plantão, em sua especialidade. Segunda ação: conduzir a questão ao Ministério Público, em plantão, e pedir que interviesse, no que fosse possível, como providência imediata. A Promotora de Justiça de plantão dispôs-se a ajudar e conseguiu. O deslocamento do médico da cidade vizinha, relatado acima, teve participação do MP. Por volta da meia noite, compareceu a plantão uma médica da mesma especialidade, para compor a dupla de plantão.
Como que se desculpando (porque quem enceta as ações referidas, em qualquer setor do serviço público, nem sempre é visto com bons olhos), a médica concluiu, em sua comunicação posterior ao MP:

"Um dos motivos desta comunicação é a constatação de que, quando acontece um evento infausto, principalmente em hospitais públicos, a imprensa em geral conduz à Sociedade informações que acabam por colocar o médico na berlinda, e, em geral, não complementa notícias de irregularidades e impropriedades administrativas geradoras de condições inadequadas de trabalho médico."

Posteriormente a médica comunicou os fatos ao Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais, que instaurou o procedimento pertinente.
A situação normalizou-se e aconteceu até de uma coordenadora ter ido assumir plantão, para cobrir falta de plantonista.
Por tudo isto não consigo entender uma espera de oito horas. Havia nada a fazer, realmente? Era só esperar?

Imagem: SUBSTANTIVO PLURAL.
http://www.substantivoplural.com.br/psicanalise-pelo-sus-em-copacabana/


2 comentários:

Raíssa Christófaro disse...

eu gostei do texto, pai.
só duas coisinhas:

corrige a palavra 'plantonista' na frase: "Vamos adiante: não podemos deixar de pensar na atitude do médico plantonisata faltoso". foi só um erro de digitação.

você diz, mais embaixo, que o cidadão quer e precisa ser atendido. mais do que isso. é direito dele e dever do Estado, que deve criar os métodos pra ser mais eficiente e eficaz, do jeitinho que o povo da administração gosta.

de resto, o texto está ótimo. =)
um beijo!

marco antônio comini christófaro disse...

Acabo de eleger você minha revisora e minha "onbudswoman" (assim mesmo?), minha pequena. Beijos! Ddz